Juliette — Juliette
Nordeste tipo exportação.
Quis evitar de qualquer jeito esta ser uma crítica cruel. Fazer arte é uma delícia, é algo que, quando levado a última instância, é uma experiência subjetiva. De forma alguma o papel da crítica é cercear a obra de arte, e sim o inverso, incentivar ao máximo, fazer a jardinagem da cultura. Mas, não tomar posicionamentos cruéis faria dessa crítica uma crítica injusta.
Primeiro passo é situar: o que é o nordeste no processo de produção artística do Brasil? O nordeste sempre foi um dos polos culturais mais ricos do nosso país, há ainda os nordestinos mais ávidos que insistem em dizer que é o maior. Na contemporaneidade brasileira há duas ideias antagônicas recorrentes: uma fetichização excessiva que coloca o nordeste como salvador da pátria e outra que simplesmente o apaga do mapa com uma bomba atômica de indiferença. Ambos estão concentrados na mesma filosofia de distorcer e implodir a cultura regional, uma conscientemente e a outra não. E o presente EP aparenta ser o casamento desses dois estímulos nocivos.
A música parida no seio nordestino carregou em seu corpo, vezes até mesmo sem se dar conta, a resistência. De que vale para uma indústria homogeneizadora, conformista e capitalista a música feita pela parte mais maltratada de forma econômica, social e politicamente? Só pelo fato dos artistas nordestinos tocarem em uma rádio já simbolizava a vitória. E por muito tempo, eu diria até hoje em alguns, essa circunstância foi de conhecimento dos artistas dessa cena.
Um personagem esvaziado que veste a personalidade de toda uma região, consequentemente acaba esvaziando de sentido toda aquela cultura também.
No jogo da comercialização, ganham os mais plastificados. O forró, o símbolo musical mais pertinente ao nordeste, vem sendo, pouco a pouco, vandalizado dentro de uma modernidade. Não é de hoje o incômodo dos artistas desse gênero com a falta de espaço nas festas juninas, as quais são cada vez mais invadidas por nomes de outras regiões e estilos. O sertanejo universitário que com sua serra elétrica dilacera a riqueza e variedade cultural do Brasil, por exemplo, é quem mais ganha mais espaço. Recentemente fui obrigado a ouvir de um conhecido que uma festa de sertanejo em fevereiro derrubaria o carnaval.
A transformação do forró em um vidro empoeirado que se guarda na estante, apenas para efeito de amostragem para turistas, e a construção de uma figura que representa uma imagem ilusória, a qual só existe quando uma cultura está sendo vendida, são decisivos para o meu incômodo ao escutar essa obra.
A produção é consistente, limpa e fácil. É um golpeio de forró, sertanejo e a MPB (desengordurada, como a burguesia gosta) misturados justamente para facilitar a digestão dos não habituados. Quando ouvi “Bença” a primeira vez eu logo me questionei: qual foi do hate intenso nessa mulher? O que há de errado?
Logo que Juliette começou a cantar, senti uma pontada na costela. Ok, ainda não é tão ruim o suficiente a ponto de ser compreensível a rejeição. Mas, sem demora, na segunda faixa, desencantei e percebi o esquema pirâmide o qual tinha entrado. É tudo fabricado, é tudo plástico. A personalidade dela fora montada em um algoritmo e só ela não percebeu. E a revelação macabra que o projeto musical já havia sido engendrado antes mesmo que a pessoa tivesse saído do reality show me transtornou ainda mais.
Perceba meu caro leitor, a angústia de quem vos escreve não é simplesmente apenas voltada para a técnica vocal, a produção simples e macia, nem mesmo a personalidade ou a escrita da letra. É o conjunto de conceitos, noções e intenções por trás de um mero EP de 6 faixas. É todo sentimento apocalíptico que permeia essa existência. O problema não é o projeto ser uma casca vazia, o problema é o projeto ser uma casca vazia ilustrada por todo um contexto cultural em crise. É a arte esvaziada do propósito de ser arte. Não ponho em questão aqui simplesmente se Juliette deve ou não ser cantora, ponho aqui em questão se ela sabe realmente se quer ser artista, porque a última impressão que tive ao terminar a audição foi “essa pessoa foi usada”.
Toda a lírica das músicas fora uma tentativa de emular a escrita de artistas nostálgicos e consagrados feito Alceu Valença e Geraldo Azevedo em suas faixas mais comerciais, as que descreviam uma beleza paradisíaca regional. Entretanto, se mira em Alceu e acerta no Nordeste fantasioso das companhias de turismo do sul do Brasil, com frases desconexas e jargões apelativos. Uma colcha de retalhos feia, feia.
Mas, é que eu venho lá do sertão
O coco é seco demais irmão
E o preconceito eu só engulo com farinha
A voz de Juliette é agradável e contida nessa estreia. Ela não demonstra desfalque, apesar da lacuna de personalidade, carisma e autenticidade.
A segunda faixa narra um romance entre uma pessoa nordestina e outra do sul, entregando explicitamente o público que se espera atender. É irônico que a música que acabei mais gostando do disco, “Doce”, tenha os créditos de Anitta e seus produtores, diferente das outras, as quais foram compostas pelos membros da banda nordestina Os Gonzagas. É a canção que tem mais senso dentro daqueles desencontros, além de aparentar ser a menos artificial. Talvez se a própria Juliette tivesse autoria sobre as letras ficasse uma impressão menos desconcertante, apesar de sua inexperiência.
Tirando a limpo, se as músicas desse EP tocassem num bar, numa tarde de domingo, não passariam vexame. Mas fora disso, a falta de expressividade artística nos relega apenas a uma embalagem, apenas um produto que se apoia no número estratosférico de pré-saves no streaming. Serve-se um prato lustroso cheio de alimentos caros, mas tempero nenhum. Mastiga-se 17 minutos e a única coisa que se sente é a mandíbula triturar aquela massa.
Ninguém deve ser desmerecido por sua arte ou seu projeto artístico. Longe dessa crítica fazer juízo de valor. Inclusive é muito importante para mim, pessoalmente, que Juliette como artista se sinta feliz fazendo aquilo que goste. Porém, é evidente que aqui em mãos temos a veiculação de uma corrupção da indústria, uma besta comercial que se aproveita da ingenuidade tanto da cantora, quanto do público. É exigir, de forma demasiada, da inocência de uma crítica que ela passe a mão na cabeça de algum artista por conta de seu bom-mocismo.
Se o nordeste que Juliette se esforça pra cantar fosse realmente o nordeste, já teríamos desfalecido nas mãos da seca, da fome e do coronelismo há muito, muito tempo atrás.
FAIXAS NÃO DETESTADAS: “Doce”, “Benzin” (...).
NOTA: 2,5 (rapadura é doce, mas não é mole não)