Marina Sena — De Primeira

Brasilidade, Eletricidade e Sensualidade.

cores do som.
5 min readSep 4, 2021

Não é difícil entender o porquê o álbum se chama “De Primeira”. Marina não esconde nada, não faz rodeios e nem fica de picuinha. É de primeira, é um gancho no ouvinte sem nem pestanejar. A artista se lança depois de sua passagem pelas bandas Rosa Neon e A Outra Banda da Lua despida de qualquer forma de medo.

Quando ouvi a forma que incorporou o axé em “Me Toca” fiquei desorientado. Parecia que um caminhão tinha passado por cima de mim. “Oxe, ela é baiana?”, me questionei adoidado. Cada vez mais consumimos um cenário o qual necessitam produzir a sua personalidade para poder cativar o público, temos um contato bizarro com artistas que tentam servir carisma em doses. Vivemos numa fome irritante por tipos espontâneos, menos fabricados. Marina foi uma paixão à primeira vista.

Se escutarmos a primeira parte de sua carreira, quando integrante de banda, notamos que a artista já veio com uma bagagem cheia. A produção, as letras e a estética, são complementares. Entretanto, em seu álbum solo, um novo patamar desse estilo de composição é desenvolvido. Rosa Neon guarda um pop melódico, suave e grudento como um algodão doce, já Marina é lisa, quente e fogosa feita uma dose de cachaça. O feito de disparar um projeto debutante tão deslumbrante assim só me fez recordar o que cantora Céu fez em 2005. A maturação é evidente, ela é dona de si mesma. “Por muito tempo, pensei ser esquisita, mas, com o tempo, descobri que sou só artista mesmo”.

A MPB, a música popular brasileira, é a ponta de lança do brasil. É o nome do nosso pop. É uma pintura modernista que sai das mãos de Tarsila do Amaral abrangendo todas as cores inexatas do quinto país mais extenso do mundo. Se perceba nesse universo particular por um só momento. Se perceba a riqueza em que está afogando a todo segundo, mesmo que não tenha se dado conta até agora. Porque Sena se percebeu.

Axé, reggae, pop rock, samba. O que você quiser encontrar, só precisa remexer na grande caixinha de surpresas “De Primeira” e puxar para fora. E o mais gostoso? Se conecta, é coeso e fluído. Pisca-se os olhos, acaba o álbum. A artista é tão eclética e espalhafatosa que o ouvinte nem percebe a dança que está dançando. O vermelho da capa é hipnotizante, luxurioso e perturbador. Marina posa com orgulho, como se já soubesse que é vencedora (e ela é).

Há inúmeros debates na arte sobre o quanto uma obra reflete a personalidade do artista. João Cabral de Melo Neto escrevia as poesias de forma mais impessoal possível, ao passo que Fernando Pessoa despejava si mesmo em cada verso. Aphex Twin criou abstrações sensoriais na música eletrônica, se vendo incapaz de dar até mesmo título às suas faixas, enquanto Bjork imprime o próprio rosto em cada trabalho seu como forma de provar que ela é dona daquela delírio, dona daquela experiência. Eu digo e arrisco que ouvir esse disco é o mesmo que ser convidado a entrar no quarto da cantora. Os pôsteres de Gal Costa na parede, o tapete bem macio (deixe os sapatos na porta por favor). Se está tão confortável ouvindo, que se sente paralelamente que deve ter sido o mesmo conforto para produzir. O humor de Marina e a facilidade que ela tem para transitar na sua extensão vocal, parecendo muitas vezes que são duas vozes, duas personalidades. O timbre de menina danada, pedaço de mal caminho.

A produção ficou por conta de Iuri Rio Branco, que é super acertado na mão. Até mesmo os exageros se encontram. E o estilo eclético, algo perigoso e difícil para muitos produtores, parece ser familiar ou costumeiro em sua direção. As guitarras agudas, ritmadas e marcantes vem e voltam por todas as músicas. Quem já seguiu um trio em dia de carnaval vai adorar essa sensação.

Destaco aqui as faixas com marcação e compasso de reggae. Um simples detalhe que já foi muito comum na MPB da década passada por força de influência dos grupos de samba-reggae ou axé, ou de bandas de reggae como Cidade Negra e Natiruts. “Temporal” é muito gostosa e melódica, enquanto “Por Supuesto” é violenta e agitada, pega pelas canelas. A letra cantada por Sena traz o ouvinte até uma armadilha.

Eu já deitei no seu sorriso
Só você não sabe
Te chamei pro risco
Então fica a vontade

Vivo em tela viva
Tela de cara e coragem
Solta esse seu muro
E põe os pés nessa viagem

A lírica sai simples, lúdica e fresca. O que queremos aqui são provocações e brincadeiras, não frases de para-choque.

“Cabelo” é linda, uma das canções que mais me cativam. Entretanto, confesso que preferiria a versão voz e violão já antes apresentada no Festival Criatura. Nesse álbum não há a sensação de falta, cansaço ou esgotamento, mas estaria mentindo se eu dissesse que não estava torcendo pra haver algum momento intimista e de acalanto.

Chegando próximo ao fim, “Seu Olhar” é uma declaração de amor das mais doces e ingênuas, cover afetuoso de Octavio Cardozzo. A dedicatória que tode amante gostaria de ouvir. No embalo vem “Santo”, fechando com as duas músicas mais ébrias provavelmente. Depois de tanto bole e não bole, a cantora dá uma deixa para uma dança lenta a dois.

É bom delimitarmos aqui, frente a todas as fortes emoções, que esse disco ainda não é a estaca no peito do vampiro. Marina Sena já é uma artista pronta, tem a faca e o queijo na mão, mas ainda sim é uma aposta. Há uma eletricidade no ar do cenário musical brasileiro que quanto mais tempo passa, mais nervosa fica. Revolucionário, transgressor e abrasivo são adjetivos muito poderosos, que busco usar com bastante cuidado. Ela pode não ser essa violência ainda, mas quem dirá no futuro? A certeza de que esse é um primoroso início de uma frutífera carreira é o que me vale, contra toda desesperança, mesmice e cafonice que sempre, sempre assombra a arte do Brasil.

Me lembro bem do receio de encontrar alguém desorientado ou entregue (percepções que me atormentam quando conheço promissores artistas brasileiros) fazendo música quando fui ouvir o álbum pela primeira vez, já que “Me Toca” e “Voltei Pra Mim” haviam sido singles estupidamente maravilhosos. Felizmente, era só ansiedade.

De Primeira se arranja direitinho no paladar do público brasileiro e é tão arrasadoramente romântico feito feijão com arroz. Um feijão com arroz que nós sentimos falta e lembramos com tamanha nostalgia, que acaba tendo um sabor de novo. Pura brasilidade.

Marina ataca tudo, simplesmente pelo fato de ser ela, de gostar de ser ela. Pode se soltar, minha musa de Taboeiras.

FAIXAS FAVORITAS: “Por Supuesto”, “Cabelo”, “Temporal”, “Seu Olhar”, “Santo”.

NOTA: 9,0 (eu já deitei no seu sorriso, só você não sabe) — SELO AS CORES DO SOM DE QUALIDADE MUSICAL.

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cores do som.

Porque parte do belo é também a sua contemplação. Porque parte do cenário também são os olhos de quem o observa. Porque parte da música também é quem a ouve.